domingo, 13 de fevereiro de 2011

A VISÃO BANTU KONGO DA SACRALIDADE DO MUNDO NATURAL

O mundo natural para o povo Bântu é a totalidade de totalidades amarradas acima como um pacote (futu) por Kalunga, a energia superior e mais completa, dentro e em volta de cada coisa no interior do universo ( luyalungunu).

Nossa Terra, o
pacote de essências (futu dia nkisi) para a vida na Terra, é parte dessa totalidade de totalidades. É vida. É o que é, visível e invisível. É a ligação do todo em um através do processo de vida e viver ( dingo-dingo dia môyo ye zinga). É o que nós somos porque somos uma parte disso. É o que mantém cada coisa na Terra e no Universo em seu lugar.

O conceito Bântu-Kôngo da sacralidade do mundo natural é simples e claro. Tem-se que deixá-los definir o nosso planeta com suas próprias palavras:
Aos olhos do povo Africano, especialmente aqueles em contato com os ensinamentos das antigas escolas Africanas, a Terra, nosso planeta, é futu dia nkisi diakânga Kalûnga mu diâmbu dia môyo - um (pacote) de essências/remédios amarrados por Kalunga com intenção de vida na Terra.

Esse futu ou funda contém cada coisa que a vida precisa para sua sobrevivência: essências/remédios (n
kisi / bilongo), comida (madia), bebida (ndwinu), etc.

O mundo natural é o que nós vemos, tocamos, sentimos, saboreamos e ouvimos e ainda assim nós não podemos alcançar o significado em sua totalidade. É o mistério de todos os mistérios. É o cerne do que é espiritual e sagrado. É ligar e desligar (Kala ye Zima) de todas as coisas, i.e., Nkingu Kibeni Wangudi Wa Kinenga mu biobio (a chave princípio de equilíbrio em tudo). Todas essas coisas, com ou sem expressão, com ou sem poder de locomoção, de acordo com o conceito Bântu de sacralidade são seres (Kadi).

Os povos Bântu, Kôngo e Luba, entre eles, aceitam o mundo natural como sagrado em sua totalidade porque, através dele, vêem refletida a grandeza de Kalunga. A energia superior de vida, aquele que é inteiramente completo (lunga) por si próprio. Assim, quando um Mûntu (ser humano) vê um minúsculo cristal (ngêngele) ele/ela vê nele, não só sua sacralidade, mas também a presença divina de Kalunga.

Além da atenção e admiração dadas a montanhas, vales, ao vento, ao céu e às mudanças do ciclo natural, o Mûntu dá especial atenção ao mundo da floresta porque, como se diz,
Mfinda Kasuka tufukidi - nós perecemos se as florestas são extintas. Por causa dessa visão popular entre os Bântu, o próprio ato de entrar na floresta torna-se um ritual sagrado.

Antes de alguém entrar na floresta deve preparar-se ritualmente, porque adentrar na floresta é entrar numa das mais ricas e bem documentadas bibliotecas vivas na Terra. Em seu leito e abaixo vivem centenas e centenas de criaturas, grandes e pequenas, visíveis e invisíveis, fracas e poderosas, amigáveis e hostis, conhecidas e desconhecidas. Em seu interior correm, serpenteando, rios dentro dos quais nadam multidões de peixes. E acima de suas folhagens pode-se ouvir sons e melodias de todos os tipos. Todas essas
coisas, dentro da floresta, constituem assuntos de aprendizagens para Mûntu, das quais ele coleta dados que pode engavetar em sua memória para uso futuro. Esse é o processo de construir conhecimento - nzailu.

Por causa dos aspectos de hostilidade presentes na floresta, o Mûntu deve proteger-se antes de entrar na floresta. Para isso, algumas vezes tem que imunizar seu corpo -kândika nitu antes de deixar a aldeia, especialmente durante a estação de caça.

O processo nkandukulu a nitu - imunização do corpo consiste em esfregar preparação medicinal no corpo, introduzir algo no corpo através de pequenas incisões na pele ou através da boca. Até mesmo os cães de caça passam por esse processo e são imunizados antes deles serem conduzidos para dentro do mato.

Adentrar uma floresta familiar é percebido como andar nos passos dos ancestrais. É descobrir o que eles conheceram transmitiram para nós, mas também encontrar saída onde eles deixaram fechado de modo que possamos caminhar em direção a mais descobertas para as necessidades de nossas gerações e aquelas das gerações futuras. Porém lá é mais que isso.

Andar na mata durante a iniciação é revisitar Makulu , onde cada coisa é possível de ser encontrada - Digamos aqui antes do trecho, que estudiosos Kôngo modernos estão usando este termo, makulu, nas suas conversações para significar biblioteca. Bem, não são as bibliotecas do mundo, coleções, em grandes parte, dos trabalhos dos mortos (bakulu), os ancestrais? Não é humanidade constituída por mais mortos do que vivos?

A revisita de makula tem um grande impacto na mente de ngudi-a-ngânga (mestre iniciadores) e seus seguidores (lândi) intelectualmente bem como espiritualmente. O processo em si mesmo é chamado
Mokina ye bafwa- conversar com o morto .
Isso é, sumariamente:

- reunião com os ancestrais, i.e., com a presença de sua energia (ngolo minienie miâu). - viver a experiência do tempo, como hoje é vivida bem como foi vivida no passado e como deve ser vivida no futuro. - andar no passado seguindo Kini Kia bakulu (a sombra dos ancestrais). - rever o laço da comunidade bio-genética - n
singa dikânda: como fortificá-lo e como expandir seus ensinamentos.

- é estar em contato espiritualmente bem como intelectualmente com a sabedoria tradicional Africana (kingânga) do passado. - é entender as condições de vida e viver daquele tempo e de agora. Finalmente, é conversar com
bakulu, ancestrais, numa experiência pessoal, i. é., sentindo sua presença entre nós hoje e amanhã.

Por causa da sacralidade do mundo natural como um real mundo vivo, tão ilustrado pela verdura de plantas e florestas, mawubi/maghubi, a maioria das reuniões que dão poderes espiritualmente é mantida em florestas. Por causa de sua importância para a vida e o viver, o mundo natural, e a floresta em particular, são percebidos como um templo aberto para todos. As pessoas são conduzidas para dentro desse templo mais espiritualmente sagrado, essa biblioteca viva, para tornar-se de verdade homem/mulher através do processo de iniciação, i. é., Mu bulwa mèso - manter-se de olhos abertos.

É um processo de aprender como se vincular com a natureza em unidade com ela. É aprender o que as florestas armazenam (como conhecimento) para nós; o que as plantas são para nosso uso; que criaturas compartilham nosso ecossistema conosco. É descobrir em nosso ambiente o que é comestível ou medicinal e o que não é.
O mundo natural é o mais seguro e rico laboratório da raça humana. É um laboratório sem paredes, que os Bântu continuam a descobrir desde a sua mais tenra idade. O processo fundamental de aprendizagem para os jovens Bântu tem lugar dentro desses laboratórios sem paredes. As pessoas andam dentro deles silenciosamente, por causa da sua sacralidade, e elas ficam de pé ali assim como diante de monumentos.

O homem do remédio (ngânga), curador da comunidade, gasta maior parte do seu tempo dentro desses templos vivos, bibliotecas e laboratórios para
estudar e coletar o remédio da comunidade. Para cada remédio ele canta uma cantiga com detalhes de como e quando o remédio é preparado e usado. Da mesma maneira, seus/suas seguidores (as) - bâna, literalmente crianças, aqueles a se tornarem futuros ngânga, repetirão kumbu lula, aquelas mesmas cantigas de remédio, bem como as suas próprias. Cantar os remédios corretamente e perfeitamente é um método popular para manter a receita do medicamento e é uma das mais importantes responsabilidades de um mbuki - curador entre os Bântu. A arte de cantar os remédios é vista também como uma rotina diária espiritualmente sagrada do nganga.

Os pais Bântu sabem que ninguém pode criar uma família a menos que conheça o caminho que conduz ao trabalho da terra, especialmente na floresta porque a maior parte dos alimentos é encontrada na floresta. Esses alimentos são os nossos primários e mais importantes remédios. Porque o que nós comemos é ambos: comida e remédio; deve-se ser cuidadoso com a quantidade de comida ingerida. Os alimentos têm que ser cultivados livres de toda contaminação química e mantidos naturalmente frescos.

Sendo as florestas, entre outras coisas, a mais documentada das bibliotecas de vida natural, o ser humano de todos os lugares corre em sua direção para obter comida, remédio, lazer e informação.
Mûntu nzo a binsansa bifuti zaduswa kwa ntôtila - um ser humano é apenas um armazém com prateleiras para serem ocupadas com a matéria prima coletada, ensina o Kôngo.

As matérias primas coletadas (ntotila) necessárias para encher as prateleiras do armazém acima têm que vir de fora do armazém onde elas possam ser encontradas. Igualmente, desde o seu nascimento o Mûntu - ser humano, é apenas um vão do armazém que será constantemente estocado com totwa - dados coletados para uso futuro.
Milongi Kasuka Ku mpemba - aprendizagem que termina com a morte, insiste o Kôngo - em outras palavras, aprendizagem é um dingo-dingo - processo de vida longa que termina somente com a morte.

Os Bântu-Kôngo acreditam e ensinam que os seres humanos estão apenas equipados, desde o ponto da concepção, com o poder de colocar dados. Eles não estão equipados com conhecimento (sua inteligência torna-se analiticamente ativa quando dados informativos são colocados dentro). Eles são computadores vivos carregando grandes, poderosos armazéns para serem cheios com dados ou informações. Seus movimentos em todos as direções (para frente, para trás, à direita, à esquerda, para cima, para baixo e para dentro de si) é intencionado essencialmente para coleção de dados. Esses dados ajudam ao Mûntu construir o que ele chama nzailu - conhecimento.

As escolas Bântu-Kôngo ensinaram que o conhecimento não está em nós. Está fora de nós. E como tal, as crianças Bântu em geral e o povo Kôngo em particular, eram ensinados desde a mais tenra idade, a andar no mato/floresta, a mais documentada biblioteca natural, onde eles podiam encontrar informação para sua sobrevivência. Esse processo de aprendizagem era realizado igualmente através de escolas especializadas ou através de grandes iniciações.
Para o Kôngo, a não ser pelas grandes iniciações, todo conhecimento era comunicado por meio de numerosas escolas que cada mestre, ngânga, ou artesão emérito organizava em volta dele próprio.

Grandes iniciações ou alta aprendizagem eram dadas por três razões principais:

- era, biologicamente, um processo social requerido, através do qual se alcançava a posição social de mulher/homem adulta (o) - Kimbuta.

- era, intelectualmente, um processo através do qual deve-se ter os olhos abertos - bulwa mèso - aos princípios fundamentais de vida e viver - nkîngu miangudi mia lutufu lwa môyo ye zingu, especialmente aqueles relacionados às leis naturais - n
siku miamena.

Finalmente era, espiritualmente, um processo através do qual tinha-se que descobrir o círculo de vida - dikenga dia môyo - e seu centro - didi - interiormente e exteriormente, a descoberta de sua própria visão de mundo e o poder de levantar-se verticalmente- telama wîmba-ngânga - nos seus pés antes de andar horizontalmente para encontrar os desafios do mundo - ntembe za nza.

Infelizmente, a situação virou de alto a baixo com a invasão dos poderes coloniais. O Mûntu foi, à força, impedido de mover-se no seu próprio ambiente e vizinhanças e perdeu não somente o seu poder de aprendizagem, o poder de coletar e guardar dados, mas também seu criativo poder de cura - lendo kiamvângila ye kiambukila. Submetido aos poderosos, o ser humano que construiu impérios, reinos, pirâmides, etc, foi declarado sem inteligência pelo invasor.

No topo disso veio o mais inumano e pecaminoso negócio oposto ao auto-desenvolvimento que tomou lugar em África - a escravidão, i. e., o tráfico de seres humanos. Isso se tornou a mais vergonhosa e desastrosa morte para o ser humano no continente africano. Nós sabemos, pessoas que viajam mais freqüentemente a diferentes partes do mundo, vão a bibliotecas (incluindo as bibliotecas naturais), escutam notícias, lêem jornais e, agora, quem trabalha com cadeia de emissoras no computador sabe mais do que aqueles que não o fazem.

Isso é o
poder de engavetar planos, idéias, a chave para a ativa aprendizagem. Sem ela Mûntu torna-se submetido a permanente aprendizagem passiva que é o agente condutor à ignorância. Colonização, escravidão, opressão e prisão, têm conduzido muitos nesse vicioso ciclo de vida.

A abolição do tráfico de escravos e descolonização não libertou completamente o povo africano em todas as partes onde eles são encontrados. Cadeias, prisões e projetos de alojamentos incrementados com grande rapidez são feitos não somente para controlar seus movimentos, mas para mantê-los fora das bibliotecas naturais, escolas e empregos. Tudo isso acontece no período que prepara para a entrada da zona criativa - lubata wa mvângila, o período de aprendizagem. Agora, armas de fogo e drogas estão sendo despejados em toda parte do continente para desestabilizar o processo de aprendizagem que deveria estar tomando o lugar nas comunidades Africanas. Conceitos de valor e sacralidade de vida e mundo estão se deteriorando.

Para os Bântu, o mundo natural é secreto e sagrado. Esses dois insondáveis epítetos para o nosso mundo natural, ampînda - secreto e anlôngo
sagrado, são cuidadosamente passados de geração a geração como o único meio de manter a mãe Terra segura e sadia para continuar a fornecer a vida na Terra.

E, por causa de ambos, o segredo - mpînda/bumpînda e a sacralidade - nlôngo/bulôngo, é um perigo para toda vida na terra, se Mûntu devido ao seu conhecimento, cuidadosamente não
Longuka bwè mu kanga ye kutula makolo ma nsiku miamena aprender como codificar e decodificar os segredos das leis naturais. Esses makolo (laços) podem ser qualquer coisa, genes ou elementos químicos.

Nós somos
sagrados porque nosso mundo natural é sagrado. Nossas moradias e nossos pertences são sagrados, porque são feitos de matérias primas tiradas do mundo natural, do mundo sagrado. Qualquer coisa feita do equilíbrio - Kinenga, do mais interno do solo é sagrado e não pode perturbar a vida dentro e em torno de nós. E muito mais, diria um Mûntu, nós somos sagrados porque nosso solo é sagrado e inalienável. Por causa dessa sacralidade e inalienabilidade desse solo (seu mundo natural particular), os Bântu mantinham seu solo, o sustento de todas as vidas, como uma inalienável comunidade. Ninguém podia colocar um preço nele. Era a precaução para evitar abuso e ganância, o solo não era mercadoria para ser comprada e vendida; o solo era inalienável no sistema tradicional. Cada domínio era ganho por uma certa matrilinearidade (ou patrilinearidade) que podia, de fato, permitir o uso de uma parte dessa área ao parente ou mesmo ao estranho/estrangeiro, mas isso não significava que dava direito sobre esse solo.

Reconhecer a sacralidade do mundo natural é o começo de nosso entendimento de ser um com a natureza; ou é ou não é. E dingo-dingo dia kala ye zima, o processo de viver (ser, aparecer, surgir no mundo natural) e morrer (sair, desligar-se do mundo natural), ou seja, acender e apagar, ligar e desligar. Um não existe sem o outro. Nosso mundo natural é sagrado porque ele carrega ambos, vida e morte, em perfeito equilíbrio para manter toda existência nele em movimento. Destruir esse equilíbrio, sua sacralidade é causar um fim para ele e para todos nós.
Autor Fu-Kiau K. K. Bunseki
Tradução: Makota Valdina Pinto