quinta-feira, 10 de março de 2011

A Encruzilhada na Concepção dos Bantu

Quem se encontra em uma encruzilhada é, neste momento, o verdadeiro centro do mundo.
A encruzilhada liga-se à situação de cruzamento de caminhos que a converte numa espécie de centro do mundo.
Lugares onde ocorrem aparições: As encruzilhadas costumam ser assombradas por gênios ou espíritos geralmente temíveis, com os quais o homem tem interesse em se reconciliar. É igualmente um lugar de passagem de um mundo para o outro, de uma vida a outra, passagem da vida à morte. Nas regiões de florestas e savanas, a encruzilhada assume a importância de algo sagrado. Costuma-se batizá-la de encruzilhada do encontro ou da residência.

O local torna-se sagrado após um ritual específico.
Em um cruzamento de caminhos de caminhos, costumam batizá-la encruzilhada do encontro ou da residência.
É nas encruzilhadas, que as mulheres BALUBAS e LULUAS (incumbidas do cuidado das plantações) costumam depositar os primeiros frutos da colheita.

Se a cidade estiver ameaçada pela fome, a população inteira se dirige em procissão às encruzilhadas mais próximas a fim de depositar ali oferendas de víveres ou de velhos utensílios domésticos, destinadas às almas dos ancestrais.
Nas encruzilhadas, ainda, é que as mulheres acabam de "desmamar" um filho, ficando assim dispensadas da proibição costumeira de terem relações sexuais durante o período de aleitamento, sacrificando uma galinha branca às almas das crianças mortas.

A encruzilhada encarna o ponto central, o primeiro estado da divindade antes da criação, é a transposição do cruzamento original de caminhos que o criador traçou no começo de todas as coisas com sua própria essência para determinar o espaço e ordenar a criação.
Para os Bantu, quando uma pessoa não sabe qual caminho seguir dizem estar em estado de PAMBWA (ENCRUZILHADA).
NJILA vai conosco aonde vamos, está em todos os lugares, porque está dentro de nós, vê tudo que vemos, pois vê com nossos olhos, sabe o que vai acontecer, pois conhece todos os caminhos e faz parte da arte divinatória.
Sem NJILA todos os elementos do sistema e seu dever ficariam imobilizados.
NJILA tem a ver com a criação. NJILA leva a propulsar (impelir para frente), a crescer, a transformar, a comunicar, ajuda as pessoas a se desenvolverem e a adquirirem um bom nome.
NJILA está relacionado com as cavidades do corpo (mukutu), cabeça (mutue), cavidade da boca e estômago (muzumbu e dikutu), umbigo (tumbu), cavidade do útero (kivaji).
NJILA nunca existiria se o mundo não fosse criado em uma encruzilhada, a verdadeira cruz bantu.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

AS FAMÍLIAS DE SANTO NO CANDOMBLÉ DE CONGO-ANGOLA


AS FAMÍLIAS DE SANTO NO CANDOMBLÉ DE CONGO-ANGOLA
*por Tata Kiundundulu – Professor Doutor Sérgio Paulo Adolfo, Tata Kisaba do Nzo Tumbansi

Em um artigo intitulado TOMA KWIIZA KYA KIZOONGA BANTU! NZAAMBI KAKALA YETO! de Taata Lubitu Konmannanjy – Unzó kwa Mpaanzu – Raimundo Nonato da Silva, publicado no site http://www.inzotumbansi.org/, o autor nos apresenta uma composição das famílias de santo pertencentes ao candomblé de congo-angola no Brasil.
Segundo ele, o candomblé de congo-angola compõe-se de cinco grandes famílias sendo a primeira delas a família de Maria Nenén, Sra. Genoveva do Bonfim, seguida de Gregório Makwende, depois da família Amburaxó, do Sr. Miguel Arcanjo de Souza, da família de Mariquinha Lemba e da família Gomeia, do Sr, Joãzinho da Goméia, Tatá Londirá. Ainda segundo o autor, em entrevista dada a nós no dia 21.01.2010, na sede da Acbantu em Salvador-Ba., a família de Maria Nenén é de origem muxicongo, a de Makweende é de origem ovimbundo, a de Mariquinha Lemba é de origem kimbundo, enquanto a Amburaxó e a Goméia já nasceram misturadas com outras nações.
A partir dessas informações faremos uma pequena reflexão sobre a composição “étnica” do Candomblé de Congo-Angola no Brasil de hoje. Essa modalidade religiosa que se contrasta com outros candomblés de outras nações, como a nação de Ketu e de Efon, tendo como parâmetro as línguas rituais e o toque de atabaques, se ampara no mito das origens – fundadores de raízes- e na língua ritual assim como em certos ritos praticados em suas casas, como únicos e pertencentes só a sua raiz ou sua casa. Alguns têm idéias claras a respeito desses grandes agrupamentos familiares, mas a maioria apenas sabe a descendência de seu fundador, que pertencia inicialmente à determinada família, quando muito.
Existem no Brasil hoje uma maioria de casas de Candomblé da vertente Congo –Angola e podemos enumerar as principais raízes, como sendo o Tumbenci, cuja fundadora foi Maria Nenén –Maria Genoveva do Bonfim, Nengwa Twenda Kwa Nzaambii era gaúcha de nascimento e foi iniciada por Roberto de Barros Reis, um liberto da província de Cabinda, Angola, África austral, provavelmente no início do século XX. Segundo o depoimento oral dos antigos era mulher muito enérgica, de semblante fechado, riso difícil, mas de caráter irrepreensível e bom coração, como prova o ato de adotar inúmeras crianças, alguns falam em 17 outros em 21, que criou como filhos até a fase adulta. Exercia a profissão de corretora de imóveis e Edison Carneiro a coloca na galeria das Sacerdotisas mais amadas da Bahia da sua época. Durante a perseguição movida pelo delegado Pedro Gordilho ao povo-de-santo, conta a história quase lendária que Maria Neném foi a única a nunca ser molestada pelo delegado. E que inclusive, corajosamente colocou em sua casa uma placa com os dizeres – cá te espero –numa clara afronta ao poder do sanguinário delegado. O terreiro Tumba Junçara fundado por Ciriáco, o Bate-Folha Salvador, fundado pelo lendário Manuel Bernardino da Paixão, o Kupapa Unsaba do Rio de Janeiro, fundado por João Lessenge, nos anos 30 do século XX.
Sendo assim, todas essas raízes pertenceriam a família de Maria Genoveva do Bonfim, pois Manuel Ciriáco e Bernardino da Paixão foram filhos diretos de Maria Nenê, e João Lessenge foi feito ritualmente por Manuel Bernardino da Paixão, tornando-se dessa maneira neto da fundadora. Também pertence a essa família outra raiz importante, o Viva-Deus, do Senhor Feliciano, cujo nome é mesmo Terreiro Viva-Deus, está situado na Estrada das Barreiras 1233E – Bairro Cabula Salvador-Bahia. Foi fundado em 1946, pelo Senhor Feliciano Alves dos Santos, que era marinheiro de profissão, mas também era Babalorixá, filho de Oxalá com Omolú, e tinha como dijina Orisasi. Importante destacar que Feliciano era de nação Ketu, de uma linhagem do recôncavo, e que tal linhagem ainda existe com casas em vários estados brasileiros, conservando o nome inicial de Viva-Deus. Era filho de santo de Zé do Vapor, Babalorixá muito conhecido em Cachoeira, Cidade do Interior da Bahia. A primeira Nengua1 do terreiro Viva Deus, junto com Senhor Feliciano, foi a Senhora Francelina Evangelista dos Santos (D. Miúda), filha de Nndanda-Nlunda, cuja dijina era Diá Lubidi, ela sim, filha de santo de Maria Genoveva do Bonfim e que implantou os ritos congo-angola, no terreiro recém formado do Senhor Feliciano.
Todas essas raízes pertencem, portanto, a família Tombeici por terem seus fundadores saído das mãos da matriarca, sendo esse um traço que demarca a origem nessa e em outras vertentes do Candomblé.
Gregório Makwende é outra figura emblemática para o Candomblé de Congo-Angola. Filho carnal de Constâncio Silva e Sousa, angolano de nascimento, de quem herdou o terreiro, nasceu em 1874 e faleceu em 1934. Quanto a família de Makwende, segundo o próprio artigo citado, permaneceu inter-famílis, e só pertence a ela, de forma restrita, os membros carnais de descendentes de Gregório Makuende.
De Mariquinha Lemba sabe-se pouquíssima coisa, pois segundo os relatos orais e há poucos dados sobre a mesma em Edison Carneiro. Retratam-na como uma mulher de gênio difícil, não afeita a visitas de desconhecidos e muito menos de brancos. Sabe-se que constituiu uma grande família, da qual o articulista em questão faz parte. Há inúmeros descendentes dessa matriarca, mas a maioria das casas encontra-se em Salvador ou no estado da Bahia. Aqui no sul não temos conhecimento de descendentes de Mariquinha Lemba.
Quanto a família Amburaxó, do Senhor. Miguel Arcanjo de Souza sabe-se que a maioria adotou os rituais da nação ketu e portanto, saíram da esfera do Congo-angola. Existem muitos descendentes do Amburaxó, mas a maioria continua executando os ritos da nação ketu.
Uma das maiores famílias de santo da nação congo-angola é a família Goméia. Espalha-se do nordeste em direção ao sul e sudeste e ainda hoje goza de muito prestígio de adeptos e de público.
João da Goméia, assim chamado por causa do nome do terreiro que dirigia em Salvador, Bahia, veio para o Rio de Janeiro e aqui fundou um terreiro que se tornou célebre pelas suas festividades. Bailarino profissional, levou para o palco a dança dos deuses coreografada, freqüentou a mídia e tornou o candomblé conhecido através de seu carisma. Formou talvez a maior família de candomblé congo-angola apesar das muitas críticas que recebeu e ainda recebe mesmo após sua morte. Principalmente no Rio de Janeiro e São Paulo há muitos descendentes de João da Goméia e que se orgulham por sê-lo.
Nessa enumeração das famílias postado em artigo por Raimundo Nonato da Silva gostaríamos de tecer alguns comentários que me parecem pertinentes na tentativa de esclarecer alguns pontos que nos parecem obscuros.
Tomemos como ponto de partida, que a história dos candomblés em geral e dos candomblés de congo-angola em particular não foram ainda escritas. Do candomblé de ketu já há algumas obras publicadas e do candomblé de gege, apenas uma, mas do candomblé de congo-angola tudo permanece no terreno da oralidade, o que dificulta em muito conhecer as verdadeiras origens e raízes de cada segmento.
Um outro ponto a ser considerado é que não existe unanimidade nas histórias de cada raiz. É chamado pelos angoleiros de raiz ou Ndanji cada grupo de casas que pertençam ao mesmo fundador. Assim sendo, existiria a raiz Tumbenci, a raiz Tumba Junsara, a Raiz Bate-Folha, a raiz Viva-Deus e talvez outras. Aliás, cada raiz advoga para o si o maior grau de pureza, de proximidade com os ritos africanos, à fidelidade aos padrões e ritos aprendidos, e não existe um conceito de congregação religiosa como em outras religiões. Há sim, muitas disputas e dissensões, agora explicitadas com maior clareza no âmbito da “internete” em comunidades de páginas de relacionamento, onde os membros procuram minimizar a força de outras casas ou de outras raízes com o intuito de valorizar mais as suas. Há na verdade, no cotidiano candomblecista, um fenômeno chamado “fuxico” que se constitui em tudo saber, tudo comentar, tudo criticar, e que funciona como cimentação necessária para a sobrevivência de uma religião sem fontes escritas. Como se trata de valorizar a palavra do “mais-velho” há muitas histórias controversas que circulam com ares de verdade, logo desmentidos por outros, esses sim, segundo eles, os melhores e maiores conhecedores da verdadeira história, e assim, o “fuxico” circula, criando novas histórias e novas versões para um mesmo fato. Sempre há nas rodas de conversa em candomblé, alguém que conhece “melhor” um fato narrado por alguém e pode e deve fazer a complementação necessária para o acontecimento, ou porque conheceu as personagens ou porque conheceu alguém que presenciou o evento em questão.
Nas comunidades de relacionamento da “internete”, que de certa forma substituem as longas conversas nos terreiros, há inúmeras polêmicas e discussões a respeito de atos litúrgicos, maneiras de cantar, o que é certo ou errado, e é claro, a casa dos outros está sempre errada, a certa, a correta, a mais tradicional é sempre a de quem faz uso da palavra. O candomblé que era restrito a atividade inter-murus, hoje espalha-se por um meio de comunicação popular, lugar onde todos têm a oportunidade de expor suas idéias e dar prosseguimento ao “fuxicos” do terreiro. Numa sociedade sem provas documentais e sem historiadores dispostos a levantar essa história, o que vale é a palavra como legitimador dos saberes.
Vejamos a composição das famílias de santo e suas respectivas composições lingüísticas para tentarmos elucidar a fala de Raimundo Nonato da Silva. Ele afirma em seu artigo que são cinco famílias, sendo uma de origem muxicongo, outra de origem kimbundo, outra de origem ovimbundo e duas que já nasceram misturadas com a nação de ketu, não tendo portanto, uma identidade muito definida. Fiquemos, por enquanto, com as três cujas identidades são de origem bantu sem mistura, pelo menos num primeiro momento. As três origens que ele dá, muxicongo - de fala kikongo –Maria Nenén, a outra família teria sua origem no meio cultural ambundo – de fala kimbundo – Mariquinha Lemba e a terceira como de língua ovimbundo – Gregório Makwende.
Parece-me que o articulista chegou a essas conclusões a partir de uma série de reuniões que ele conseguiu realizar com o povo de santo angoleiro de Salvador, Bahia, através da Acbantu - Associação Cultural de Preservação do Patrimônio Bantu - numa série de eventos denominado de Kizoonga Bantu no período de 11 a 14 de Fevereiro de 2003. Através dessas reuniões e cursos de língua kimbundo e kikongo pode-se colher dados importantes para se chegar a conclusão do que ele expõe no referido artigo, o que consideramos uma grande contribuição para se, aos poucos, conhecer melhor esse universo religioso.
No entanto, vemos com certa reserva as conclusões de Raimundo Nonato da Silva, tendo em vista os ritos e nomes ainda existentes no Candomblé de Congo-Angola e que foram registrados por Edison Carneiro (CARNEIRO: 1982) nos anos 30. Os ritos encontrados no interior das casas de santo, são em sua quase maioria de extrato congo, principalmente de Cabinda, como demonstramos em outro trabalho nosso.(ADOLFO;2010) O próprio termo Nkissi, sinônimo de divindade no universo lingüístico congo foi o que permaneceu e predominou no Brasil. Outros povos bantu chegados ao Brasil mantêm, em África, nomes diferentes para suas divindades, nomes que não foram registrados por aqui, pelo único etnólogo que registrou as manifestações culturais dos bantu na esfera religiosa. Se as famílias Mariquinha Lemba e Gregório Makwende fossem respectivamente do universo kimbundo e Ovimbundo, com certeza teriam nomes próprios para suas divindades, mas isso não acontece. Também, Edison Carneiro ao falar deles no seu Candomblés da Bahia (CARNEIRO;1982) nomeia-os como pertencentes a nação congo, juntamente com Manuel Bernardino da Paixão, do Bate Folha. Porque Edison Carneiro os dá como congos, se os mesmos eram Ambundos e Ovimbundos? Teria sido falha na observação do etnólogo, que convivia com as maiores autoridades do candomblé em sua época? Ou seus informantes também não conseguiam distinguir as línguas que falavam? São interrogações que ficam por enquanto em aberto a espera de pesquisas mais acuradas. No terreno das religiões bantu no Brasil, sobretudo do Candomblé Congo-Angola, tudo está ainda por ser feito.
Creio que uma possível explicação esteja na questão da língua ritual. É possível que uma porção maior do vocabulário das casas de Mariquinha Lemba seja de origem kimbundo, assim como a casa de Makwende use mais do Ovimbundo, para praticar os mesmos rituais da família Maria Nenén. Continuamos acreditando que o candomblé de congo-angola praticado no Brasil tenha suas raízes mais profundas nas terras de Cabinda, com apreciáveis contribuições de outros povos. E a chegada de escravizados não obedecia a nenhum critério menos ainda o das linguagens. Aliás, havia uma política de se misturar indivíduos de grupos lingüísticos os mais diferentes para que todos só tivessem como meio de comunicação a língua portuguesa, evitando assim fugas e sublevações. Nesse contingente populacional circulavam línguas africanas diferentes com predomínio de umas sobre as outras de acordo com a quantidade numérica dos falantes. Claro que, acreditamos que aconteceram importantes trocas lingüísticas até porque todas as línguas tinham um tronco comum que era a raiz bantu, apesar de serem línguas, se aparentadas em alguns pontos, muito diferentes em outros.
Assim como houve misturas lingüísticas também aconteceram acréscimos e supressões de determinados ritos, alguns já pouco lembrados como conseqüência do rapto, da captura, dos duros dias a espera dos navios e finalmente a viagem penosa e o mercado de escravos no Brasil. Traziam na lembrança e no coração seus ritos e memórias, mas agora intervalados pelos duros dias iniciais de cativeiro e pela difícil vida do trabalho escravo. Restabelecer os laços com a África e com um passado perdido encontrou na religião um refrigério para os que haviam perdido a liberdade lá do outro lado do Atlântico e não viam nenhuma saída para mudar a situação em que foram colocados pela condição servil.
Voltando a questão das cinco famílias enumeradas por Raimundo Nonato da Silva, acrescentaríamos que há candomblés que não foram enumerados nessas famílias. Para citar apenas três, a raiz de Nanã de Aracaju, com ramificações importantes em São Paulo-Sp. através de Mãe Manadeuí (PRANDI:1991) e outras casas da mesma raiz, e o Tombeici de Ilhéus, fundado ainda no século XIX e portanto anterior ao Candomblé de Maria Nenê. É necessário que se descubra a origem da casa de Nana de Aracaju, que permanece aberta no mesmo local de sua fundação, e segundo notícias, desenvolve importante papel social na cidade, assim como o do Tombeici de Ilhéus, com uma intensa programação cultural e ainda, uma outra raiz na cidade de Nazaré das Farinhas, no interior baiano, chamada de Congo de Ouro, da qual temos notícia apenas por ouvir dizer.
É importante frisar que a organização social e familiar entre os bantu em África se organiza em torno dos clãs, que é um conjunto de famílias sob a descendência matrilinear. Um conjunto de clãs de ancestral comum se estrutura em Kandas, cujo fundador é comum a todos os membros da kanda. Uma primeira unidade seria o clã e uma unidade maior seria a Kanda.
Parece-nos que esta estrutura permaneceu no Brasil na esfera dos cultos religiosos. Cada casa de santo formaria um clã, enquanto as famílias seriam as kandas, dada as características apresentadas.
“Comme dans de nombreuses sociétés bantoues, deux cadres fondamentaux régissent lá vie: populations kôngo em general, et dês lari em particulier: Il s’agite d’abord de l’intistitution du kánda, Le matrilignage – terme que l’on traduire schematiquement par famille – (...) (Nsondé:1999, pg.29)
Por exemplo, a kanda de Maria Nenê é formada a partir de um ancestral comum, ela própria enquanto fundadora, e o ancestral mítico, o Nkissi Kavungo. As várias raízes, pertencentes a essa kanda, como o Tombeici, O Tumba Junsara, com suas várias ramificações, o Bate Folha de Salvador e o Kupapa Unsaba, do Rio de Janeiro, seriam os clãs. Os laços de parentesco permanecem no terreno religioso porque os familiares desapareceram por efeito dos horrores da escravidão. Reconstruiu-se dessa maneira, nos terreiros religiosos e nos espaços sagrados a organização social do povo bantu e assim permanece até hoje.
Quanto ao clã, vale a pena ouvirmos João Vicente Martins em seu trabalho sobre os bakongos:
“Como já referimos, a base da organização social bakongo ou Tukongo é a família e a ela pertencem todos os parentes, razão pela qual todos os elementos familiares estão sob a alçada e autoridade de um “mwata” (chefe), assistido por um ajudante. Por sua vez, todas as aldeias ou clãs estão subordinados ao “fumo” (chefe de etnia). (MARTINS: 2008, Pg.240)
Portanto, de acordo com nossa argumentação podemos ver que cada terreiro está sob a guarda de um Sacerdote (Nganga) que exerce o poder total sobre a população daquele terreiro, mas não tem nenhuma jurisdição sobre os outros terreiros. Na organização do Nzo, forma-se uma rede de auxiliares, mas o chefe principal é sempre o Pai-de-Santo, que por sua vez, só deve submissão a chamada Casa Matriz, local e sede da Kanda.
Sendo assim, as kandas enumeradas por Tata Konmannanjy deverão receber novas irmãs na medida que os estudos sobre os angoleiros começarem a ser desenvolvidos.
O trabalho da Acbantu é pioneiro na área e poderá render outras pesquisas de igual teor, uma vez que Raimundo Nonato da Silva é historiador e poderá desenvolver pesquisas mais detalhadas e profundas na área. Aguardemos novas descobertas, interessantes e sérias como essa, vindas da parte da Acbantu.

REFERÊNCIAS
CARNEIRO, Edison. Candomblés da Bahia. São Paulo: Editora Tecnoprint, 1982.
MARTINS, João Vicente. Os bakongos ou tukongos do nordeste de angola.Lisboa:Imprensa Nacional-casa da moeda, 2008.
MARTINS, Joaquim. cabindas – história – crenças – usos e costumes. Disponível em http://www.cabinda.net.
PRANDI, Reginaldo. Os Candomblés de São Paulo. São Paulo: EDUSP, 1991


DIVINDADES CULTUADAS NO UNIVERSO CULTURAL BAKONGO


SIMBI, NKITA E NKISSI          

SIMBI, NKITA E NKISSI – DIVINDADES CULTUADAS NO UNIVERSO CULTURAL BAKONGO

Profº Drº Sergio Paulo Adolfo – Tata Kisaba Kiundundulu

Segundo Luc de Heusch em seu livro Le Roi de Kongo et les monstres sacrés (HEUSCH: 2000) os habitantes do Congo, principalmente aqueles que faziam parte do antigo reino do Congo, cultuam as divindades Simbi, Nkita e Nkisi, dependendo do grupo étnico, de diversas maneiras, sendo um pouco diferente a concepção de cada povo  em relação as mesmas divindades. Pretendemos nesse artigo, baseados nesse autor, trazer algumas contribuições sobre o assunto, tentando elucidar, através dessas informações, algumas práticas do candomblé de Congo-angola do Brasil.
De acordo com as informações de que dispomos, a classe de espírito mais conhecida e louvada pelos adeptos dos cultos afro-brasileiros de feição bantu são os Minkisi,(sing. Nkissi) registrados em primeira mão por Edison Carneiro, em 1938,(CARNEIRO:1982)  num livro chamado Candomblés da Bahia. Também, pelas observações que temos efetuado, o Nkissi é largamente cultuado, em que pese em algumas casas mais sincretizadas com o rito nagô serem denominados e confundidos com os orixás nagô, decorrência do sincretismo com aqueles. No entanto, qualquer angoleiro, por mais milongado[1] que seja, conhece perfeitamente o termo Nkisi e será capaz de falar dele com certa desenvoltura.  Modernamente temos percebido o uso dos termos Akixi e Mukixi, para designar essas divindades, o que se dá por influência de algumas leituras, feita por parte de angoleiros mais letrados, e que, no entanto, não corresponde ao conhecimento da massa de fiéis. Para esses, os angoleiros estribados apenas na tradição oral, existem os Minkisi, conhecimento que receberam através dos ensinamentos orais transmitidos pelos mais velhos como é de praxe nessa modalidade religiosa e continuam usando o termo Nkisi para nomear os deuses cultuados em seus templos. O Nkisi é o único que está presente nas rezas, cantigas e na conversa do cotidiano das casas-de-santo de congo-angola.
Quanto ao Simbi, apesar de desconhecido da maioria dos angoleiros, de maneira formal, a palavra Simbi aparece em inúmeras cantigas, afora existir um Nkisi por nome Kisimbi, um Nkisi aquático, que também vamos encontrar nos registros de Edison Carneiro e de Luc de Heusch.  O Nkita, por sua vez, não aparece nas cantigas, nem nas rezas e louvações, e a única informação mais concreta sobre a sua existência entre nós foi-nos dada por Tatá Tawá, que afirma que o mesmo é cultuado no Bate-Folha de Salvador-Ba., num culto de grande mistério e de maior fundamento ainda, a que só os iniciados da casa, e nem todos, teriam acesso a esse conhecimento e a essa prática litúrgica.
No entanto, segundo Luc de Heusch, baseado em outros autores, afirma que os espíritos Simbi e os espíritos Nkita são conhecidos e cultuados em todo o mundo cultural congo, com apenas duas exceções, conforme tabelas abaixo. Nossa investigação procura compreender porque o Nkita, tão conhecido e cultuado no mundo congo não atravessou o atlântico, ou se isso aconteceu, e ele foi esquecido pelos afro-bantu já em solo brasileiro.
O simbi, apesar de não ter culto específico como tem o Nkisi, está presente em algumas cantigas, e, apesar do desconhecimento dos angoleiros a respeito do mesmo, ele não se encontra ausente de todo do universo do candomblé congo-angola.
Vejamos, num primeiro levantamento, que povos os cultuam na África congolesa e qual a natureza e funcionalidade desses espíritos. Como dissemos acima, um desses espíritos, Kisimbe, é cultuado no Brasil como uma entidade aquática e é do sexo feminino. Não há outros Minkissi com esse nome ou um nome semelhante. Mas o espírito Kisimbe é encontrado entre os Villi povo habitante do nordeste de Cabinda. Também entre os Mpangu-Ntandu, ele, o Kissimbe, é quem preside a cerimônia iniciática do Kimpasi.
Vejamos como cada povo, listado por Heusch, define a natureza dos espíritos Nkita e Simba.

Congo meridional – justapõe Nkita e Simbi
Nkita  -espírito aquático
Simbi – espírito terrestre
Para os povos do congo meridional, o Nkita é um espírito aquático enquanto o Simbi é um espírito terrestre. O primeiro é sempre um espírito benevolente, ao passo que o Nkita é um espírito vingativo e às vezes cruel.

Mpangu-Ntandu
Nkita- os que morreram de morte violenta
Nkita – são as pedras encontradas na água
Simbi – desconhecido desse grupo.
Os Mapngu-Ntandu desconhecem os Simbi e para eles os Nkita são os antepassados que morreram de morte violenta. São representados pelas pedras dos rios, que são retiradas por pessoas em transe com os próprios Nkita. Para esse grupo, o Nkita não é portanto um espírito da natureza e sim o espírito de alguém que já teve vida terrena e morreu de morte não natural.

Ndibu
Simbi –são os mortos que morreram de morte violenta
Nkita – são emanações dos simbi e são representados pelas pedras encontradas na água do rio.
Para os Ndibu, contrariamente ao Mpangu-Ntandu, os espíritos simbi sim é que são os mortos por causas não naturais, enquanto os Nkita são espíritos menores, ou seja, emanações dos Simbi. Entre estes também, a representação dos Nkita são as pedras encontradas nos leitos dos rios e que são retiradas pelas pessoas em transe com os espíritos Nkita.

Mbata –
Nkita – são emanações dos simbi e tal como entre os Ndibu são representados pelas pedras encontradas na água do rio.
Para os Mbata, os Nkita são emanações dos simbi tal como entre os Ndibu, são também representados pelas pedras do rio. Além disso, os Nkita aquáticos são usados para tratar de doenças congênitas, inclusive de partos.
Para os do Congo meridional, Mpangu-Ntandu, Ndibu, Mbata, todos os Nkita capturados na água em forma de pedras, descendem dos gênios protetores das linhagens, enquanto os Simbi só exercem sua ação benevolente nas regiões onde permanecem. Poderíamos dizer que os Nkita são espíritos de linhagem enquanto os simbi seriam espíritos locais.

Yombe (pl. Baiombe)
Simbi – são criaturas aquáticas benevolentes
Nkita – são criaturas terrestres agressivas
Nkissi nsi – são os gênios da terra
Entre os Yombe, os Nkita provocam a paralisia das pernas, enquanto os simbi tratam das moléstias das pernas (sempre são figuras protetoras)

O Nganga Mbenza – sacerdote de Nkitas os usa para tratar de doenças não de origem de nascimento
Os nkita vivem nos cascalhos sob o solo, e os Simbi vivem nas fontes e rios.

Mboma
Nkita – desconhecidos

Woyo (pl. Bauoio)
 Cultuam os Nkissi como os gênios protetores, tanto da floresta como das águas.
Os Nkitas são desconhecidos desse grupo e os Simbi – são as crianças ou enviados dos grandes espíritos Bakisi ba si – Gênios locais habitantes das águas- e são também responsáveis pelos nascimentos anormais como os anões, crianças doentes, albinos ou crianças que nascem com o cordão umbilical enrolado no pescoço. Os gêmeos são considerados a encarnação dos simbis, que se comunicam com eles durante os sonhos.

Villi (pl. Bavili)

Cultuam os Nkissi e desconhecem os simbi e os Nkita. No entanto, cultuam o Kissimbi, o espírito que preside o Kimpasi entre os Mpangu-Ntandu., e entre eles, os Villi, o Kissimbe é um espírito das águas.

Teke ou tio (pl. Bakoki)

Cultuam os Nkita que chamam de Nkira, que são espíritos da natureza responsáveis pela fertilidade. Cada aldeia possui seu Nkira benfazejo cujo sacerdote é o chefe da aldeia local. Mas também há dois outros sacerdotes, o primeiro encarregado das preces ao Nkira e outro encarregado dos sacrifícios. O primeiro, mora próximo do local onde o Nkira permanece, próximo a um rio ou a floresta, enquanto o outro mora no santuário do Nkira, normalmente em frente a casa do chefe da aldeia.

Kukuya Congo Brazzaaville – mesmo grupo lingüístico dos Tio

Cultuam os Nkita (Nkira) que são espíritos aquáticos e estes possuem poderes terapêuticos.


POVOS QUE CULTUAM MINKISSI NA CONDIÇÃO DE ESPÍRITOS CTÔNICOS


Como podemos perceber, de acordo com Heusch, apenas três povos cultuam os Minkissi, sinal claro de que o Candomblé de Congo-Angola do Brasil foi fundado por pessoas oriundas dessas etnias. Esses três povos formavam outrora os reinos de Loango, N’Goio e Kakondo, tributários do antigo Reino do Congo, e que hoje, formam o enclave de Cabinda, pertencente ao país de Angola.
Apesar dessa afirmação de Heusch, o Pe. Martins em seu livro sobre os povos de Cabinda nos informa que:

“3. Em certos ritos, festas e observâncias, onde o culto se dirige directamente ao “delegado” do Nkisi Nsi: os Nkita, Kimpasi, Mbumba Luando, sendo estes, por sua vez, dependentes do Nkisi Nsi e a ele consagrados.
Os Nkita eram bem conhecidos de todos os clãs.
Os Nkita castigavam aparecendo e partindo curavam.” (MARTINS:pg. 16 s/d)

Estas informações do Pe. Martins contradizem as de Heusch, pois para o segundo, como vimos, apenas os Baiombe, entre os povos de Cabinda, conhecem o Nkita, como um espírito terrestre. No entanto, Pe. Martins afirma com todas as letras que, os Nkita eram conhecidos de todos os clãs que habitavam o país de Cabinda.
Pe. Martins delimita o país de Cabinda, habitado pelos seguintes grupos étnicos: Bauoio, Bakongo, Basundi, Balinge, Bavilli, Baiombe, Bakoki e outros que ele não nomeia.
Para os Bauoio (Woio, sing.) os simbi exercem um papel subalterno, pois são como crianças enviadas dos grandes espíritos da terra, os bakissi ba si. Pensamos estar aí o princípio do fio da meada para entendermos os nossos espíritos infantis, os kafiotos ou monandengues que são confundidos com os erês da nação ketu.

(...)Meme situation chez les Woyo qui ignorant les nkita. En outre, ceux-ci n’accordent aux simbi qu’un rang subalterne: ils sont les enfants ou les envoyés des grands esprits chtoniens bakisi ba si, qui seuls sont l’objet d’un cult régulier (Mulinda, 2985, p. 150 et 331) (Heusch:2000)[2]

Um ponto em comum, destacado pelo autor de Les Rois de Kongo é que todos esses espíritos chegam até os homens através do transe e da revelação em sonhos. Também a forma de cultuá-los é muito semelhante entre estes povos, seja em relação ao Simbi, ao Nkita ou ao Nkissi. O elemento principal de sua representação é uma pedra, retirada do leito de um rio, por pessoas em transe com o espírito. Essa pedra é, quase sempre, colocada num cesto, acompanhada de pemba, argila vermelha, pó de tacula e outras especiarias, tudo regado a vinho de palma.
As qualidades e funções desses espíritos, quase sempre protetores, varia de povo para povo como vimos, sendo que entre alguns o Nkita é sempre agressivo, enquanto que para outros a agressividade cabe ao Simbi. Quanto à natureza intrínseca deles, para uns o Simbi é aquático e o Nkita terrestre ou vice-versa. Apenas para os três povos de Cabinda, cultuadores do Nkissi é que este sempre, com exceção do Nkondi e do Nkossi, que são por sua vez, utilizados pelos Bandoki, no intuito de feitiçaria, todos os demais Minkissi tem o poder benevolente de curar, trazer prosperidade, colheitas fartas e chuvas benfazejas. Os Nkita, os Simbi e os NKissi fazem parte do cotidiano desses povos e os ajudam a vencer as batalhas do dia-a-dia.

O nkita no Brasil

Como dissemos anteriormente, diferentemente de Cuba, onde nas tradições do Palo Congo o Nkita é reconhecido e cultuado (ver referência) ou no Haiti com seu culto ao Simbi, no Brasil apenas o Nkissi é cultuado nos candomblés de congo-angola, sendo a única referência ao Nkita aquela informação dada por Tatá Tawá que é membro da prestigiosa e tradicional casa do Bate-Folha, sediada em Salvador-Ba. O simbi aparece em algumas cantigas, mas nem sempre é notado pela maioria dos fiéis que os confunde com Kissimbe, um importante nkissi das águas doces.
No entanto, Luc de Heusch nos chama atenção para o fato de que um elemento comum entre esses povos da área lingüística do congo é o transe. No kimpasi, a grande cerimônia de iniciação entre os bakongo, o transe acontece com a tomada do neófito por um espírito Nkita. Também o autor nos adianta que os simbi e os nkitas são considerados por alguns povos como espíritos subalternos, mensageiros dos espíritos ctnônicos, os Nkisi basi.
Entre os paleiros[3] cubanos há uma concordância que os nkita e simbi sejam espíritos da natureza e os Minkissi seriam forças ctônicas semelhantes aos orixás nagôs e aos voduns gege. No Brasil, essa informação não é muito clara entre o povo-de-santo angoleiro, pois como vimos os simbis e nkitas não são cultuados diretamente.
Sendo o assunto ainda inconcluso, porque demanda novas investigações, diríamos que para os povos da área bakongo, há três classes de espíritos, a saber:

1) Os Minkissi, que são as grandes forças ctônicas, formadoras do universo;
2) Os espíritos elementais da natureza, como os simbi e os nkita, sendo os primeiros espíritos aquáticos e os segundos espíritos terrestres;
3) Os espíritos dos antepassados, tanto os bons (os bakulu) quanto os maus, (os matebo ou nkuyu).
No entanto, é necessário atentar que os bakongos são compostos de vários povos com concepções religiosas nem sempre coincidentes, pois como vimos, se todos são acordes que os simbi e os nkita são espíritos da natureza, nem sempre são acordes quanto se são aquáticos ou terrestres ou se são bons ou maus.  Para nós, em nossa linha de investigação temos nos concentrado nos povos que hoje compõe a província de Cambinda – sobretudo aqueles pertencentes ao outrora reinos de Loango, Kakondo e N’Goyo, porque estes apresentam traços similares a religiosidade praticada no Brasil pelo povo-de-santo angoleiro. Inclusive em Cambinda, vamos encontrar a associação dos mascarados ndunga, e da instituição do Mbingo, de  que já tivemos oportunidade de comentarmos em outro trabalho.

Fonte: http://www.inzotumbansi.org/index.php?option=com_content&view=article&id=10:simbi-nkita-e-nkissi&catid=4:nsamu&Itemid=29




domingo, 13 de fevereiro de 2011

A VISÃO BANTU KONGO DA SACRALIDADE DO MUNDO NATURAL

O mundo natural para o povo Bântu é a totalidade de totalidades amarradas acima como um pacote (futu) por Kalunga, a energia superior e mais completa, dentro e em volta de cada coisa no interior do universo ( luyalungunu).

Nossa Terra, o
pacote de essências (futu dia nkisi) para a vida na Terra, é parte dessa totalidade de totalidades. É vida. É o que é, visível e invisível. É a ligação do todo em um através do processo de vida e viver ( dingo-dingo dia môyo ye zinga). É o que nós somos porque somos uma parte disso. É o que mantém cada coisa na Terra e no Universo em seu lugar.

O conceito Bântu-Kôngo da sacralidade do mundo natural é simples e claro. Tem-se que deixá-los definir o nosso planeta com suas próprias palavras:
Aos olhos do povo Africano, especialmente aqueles em contato com os ensinamentos das antigas escolas Africanas, a Terra, nosso planeta, é futu dia nkisi diakânga Kalûnga mu diâmbu dia môyo - um (pacote) de essências/remédios amarrados por Kalunga com intenção de vida na Terra.

Esse futu ou funda contém cada coisa que a vida precisa para sua sobrevivência: essências/remédios (n
kisi / bilongo), comida (madia), bebida (ndwinu), etc.

O mundo natural é o que nós vemos, tocamos, sentimos, saboreamos e ouvimos e ainda assim nós não podemos alcançar o significado em sua totalidade. É o mistério de todos os mistérios. É o cerne do que é espiritual e sagrado. É ligar e desligar (Kala ye Zima) de todas as coisas, i.e., Nkingu Kibeni Wangudi Wa Kinenga mu biobio (a chave princípio de equilíbrio em tudo). Todas essas coisas, com ou sem expressão, com ou sem poder de locomoção, de acordo com o conceito Bântu de sacralidade são seres (Kadi).

Os povos Bântu, Kôngo e Luba, entre eles, aceitam o mundo natural como sagrado em sua totalidade porque, através dele, vêem refletida a grandeza de Kalunga. A energia superior de vida, aquele que é inteiramente completo (lunga) por si próprio. Assim, quando um Mûntu (ser humano) vê um minúsculo cristal (ngêngele) ele/ela vê nele, não só sua sacralidade, mas também a presença divina de Kalunga.

Além da atenção e admiração dadas a montanhas, vales, ao vento, ao céu e às mudanças do ciclo natural, o Mûntu dá especial atenção ao mundo da floresta porque, como se diz,
Mfinda Kasuka tufukidi - nós perecemos se as florestas são extintas. Por causa dessa visão popular entre os Bântu, o próprio ato de entrar na floresta torna-se um ritual sagrado.

Antes de alguém entrar na floresta deve preparar-se ritualmente, porque adentrar na floresta é entrar numa das mais ricas e bem documentadas bibliotecas vivas na Terra. Em seu leito e abaixo vivem centenas e centenas de criaturas, grandes e pequenas, visíveis e invisíveis, fracas e poderosas, amigáveis e hostis, conhecidas e desconhecidas. Em seu interior correm, serpenteando, rios dentro dos quais nadam multidões de peixes. E acima de suas folhagens pode-se ouvir sons e melodias de todos os tipos. Todas essas
coisas, dentro da floresta, constituem assuntos de aprendizagens para Mûntu, das quais ele coleta dados que pode engavetar em sua memória para uso futuro. Esse é o processo de construir conhecimento - nzailu.

Por causa dos aspectos de hostilidade presentes na floresta, o Mûntu deve proteger-se antes de entrar na floresta. Para isso, algumas vezes tem que imunizar seu corpo -kândika nitu antes de deixar a aldeia, especialmente durante a estação de caça.

O processo nkandukulu a nitu - imunização do corpo consiste em esfregar preparação medicinal no corpo, introduzir algo no corpo através de pequenas incisões na pele ou através da boca. Até mesmo os cães de caça passam por esse processo e são imunizados antes deles serem conduzidos para dentro do mato.

Adentrar uma floresta familiar é percebido como andar nos passos dos ancestrais. É descobrir o que eles conheceram transmitiram para nós, mas também encontrar saída onde eles deixaram fechado de modo que possamos caminhar em direção a mais descobertas para as necessidades de nossas gerações e aquelas das gerações futuras. Porém lá é mais que isso.

Andar na mata durante a iniciação é revisitar Makulu , onde cada coisa é possível de ser encontrada - Digamos aqui antes do trecho, que estudiosos Kôngo modernos estão usando este termo, makulu, nas suas conversações para significar biblioteca. Bem, não são as bibliotecas do mundo, coleções, em grandes parte, dos trabalhos dos mortos (bakulu), os ancestrais? Não é humanidade constituída por mais mortos do que vivos?

A revisita de makula tem um grande impacto na mente de ngudi-a-ngânga (mestre iniciadores) e seus seguidores (lândi) intelectualmente bem como espiritualmente. O processo em si mesmo é chamado
Mokina ye bafwa- conversar com o morto .
Isso é, sumariamente:

- reunião com os ancestrais, i.e., com a presença de sua energia (ngolo minienie miâu). - viver a experiência do tempo, como hoje é vivida bem como foi vivida no passado e como deve ser vivida no futuro. - andar no passado seguindo Kini Kia bakulu (a sombra dos ancestrais). - rever o laço da comunidade bio-genética - n
singa dikânda: como fortificá-lo e como expandir seus ensinamentos.

- é estar em contato espiritualmente bem como intelectualmente com a sabedoria tradicional Africana (kingânga) do passado. - é entender as condições de vida e viver daquele tempo e de agora. Finalmente, é conversar com
bakulu, ancestrais, numa experiência pessoal, i. é., sentindo sua presença entre nós hoje e amanhã.

Por causa da sacralidade do mundo natural como um real mundo vivo, tão ilustrado pela verdura de plantas e florestas, mawubi/maghubi, a maioria das reuniões que dão poderes espiritualmente é mantida em florestas. Por causa de sua importância para a vida e o viver, o mundo natural, e a floresta em particular, são percebidos como um templo aberto para todos. As pessoas são conduzidas para dentro desse templo mais espiritualmente sagrado, essa biblioteca viva, para tornar-se de verdade homem/mulher através do processo de iniciação, i. é., Mu bulwa mèso - manter-se de olhos abertos.

É um processo de aprender como se vincular com a natureza em unidade com ela. É aprender o que as florestas armazenam (como conhecimento) para nós; o que as plantas são para nosso uso; que criaturas compartilham nosso ecossistema conosco. É descobrir em nosso ambiente o que é comestível ou medicinal e o que não é.
O mundo natural é o mais seguro e rico laboratório da raça humana. É um laboratório sem paredes, que os Bântu continuam a descobrir desde a sua mais tenra idade. O processo fundamental de aprendizagem para os jovens Bântu tem lugar dentro desses laboratórios sem paredes. As pessoas andam dentro deles silenciosamente, por causa da sua sacralidade, e elas ficam de pé ali assim como diante de monumentos.

O homem do remédio (ngânga), curador da comunidade, gasta maior parte do seu tempo dentro desses templos vivos, bibliotecas e laboratórios para
estudar e coletar o remédio da comunidade. Para cada remédio ele canta uma cantiga com detalhes de como e quando o remédio é preparado e usado. Da mesma maneira, seus/suas seguidores (as) - bâna, literalmente crianças, aqueles a se tornarem futuros ngânga, repetirão kumbu lula, aquelas mesmas cantigas de remédio, bem como as suas próprias. Cantar os remédios corretamente e perfeitamente é um método popular para manter a receita do medicamento e é uma das mais importantes responsabilidades de um mbuki - curador entre os Bântu. A arte de cantar os remédios é vista também como uma rotina diária espiritualmente sagrada do nganga.

Os pais Bântu sabem que ninguém pode criar uma família a menos que conheça o caminho que conduz ao trabalho da terra, especialmente na floresta porque a maior parte dos alimentos é encontrada na floresta. Esses alimentos são os nossos primários e mais importantes remédios. Porque o que nós comemos é ambos: comida e remédio; deve-se ser cuidadoso com a quantidade de comida ingerida. Os alimentos têm que ser cultivados livres de toda contaminação química e mantidos naturalmente frescos.

Sendo as florestas, entre outras coisas, a mais documentada das bibliotecas de vida natural, o ser humano de todos os lugares corre em sua direção para obter comida, remédio, lazer e informação.
Mûntu nzo a binsansa bifuti zaduswa kwa ntôtila - um ser humano é apenas um armazém com prateleiras para serem ocupadas com a matéria prima coletada, ensina o Kôngo.

As matérias primas coletadas (ntotila) necessárias para encher as prateleiras do armazém acima têm que vir de fora do armazém onde elas possam ser encontradas. Igualmente, desde o seu nascimento o Mûntu - ser humano, é apenas um vão do armazém que será constantemente estocado com totwa - dados coletados para uso futuro.
Milongi Kasuka Ku mpemba - aprendizagem que termina com a morte, insiste o Kôngo - em outras palavras, aprendizagem é um dingo-dingo - processo de vida longa que termina somente com a morte.

Os Bântu-Kôngo acreditam e ensinam que os seres humanos estão apenas equipados, desde o ponto da concepção, com o poder de colocar dados. Eles não estão equipados com conhecimento (sua inteligência torna-se analiticamente ativa quando dados informativos são colocados dentro). Eles são computadores vivos carregando grandes, poderosos armazéns para serem cheios com dados ou informações. Seus movimentos em todos as direções (para frente, para trás, à direita, à esquerda, para cima, para baixo e para dentro de si) é intencionado essencialmente para coleção de dados. Esses dados ajudam ao Mûntu construir o que ele chama nzailu - conhecimento.

As escolas Bântu-Kôngo ensinaram que o conhecimento não está em nós. Está fora de nós. E como tal, as crianças Bântu em geral e o povo Kôngo em particular, eram ensinados desde a mais tenra idade, a andar no mato/floresta, a mais documentada biblioteca natural, onde eles podiam encontrar informação para sua sobrevivência. Esse processo de aprendizagem era realizado igualmente através de escolas especializadas ou através de grandes iniciações.
Para o Kôngo, a não ser pelas grandes iniciações, todo conhecimento era comunicado por meio de numerosas escolas que cada mestre, ngânga, ou artesão emérito organizava em volta dele próprio.

Grandes iniciações ou alta aprendizagem eram dadas por três razões principais:

- era, biologicamente, um processo social requerido, através do qual se alcançava a posição social de mulher/homem adulta (o) - Kimbuta.

- era, intelectualmente, um processo através do qual deve-se ter os olhos abertos - bulwa mèso - aos princípios fundamentais de vida e viver - nkîngu miangudi mia lutufu lwa môyo ye zingu, especialmente aqueles relacionados às leis naturais - n
siku miamena.

Finalmente era, espiritualmente, um processo através do qual tinha-se que descobrir o círculo de vida - dikenga dia môyo - e seu centro - didi - interiormente e exteriormente, a descoberta de sua própria visão de mundo e o poder de levantar-se verticalmente- telama wîmba-ngânga - nos seus pés antes de andar horizontalmente para encontrar os desafios do mundo - ntembe za nza.

Infelizmente, a situação virou de alto a baixo com a invasão dos poderes coloniais. O Mûntu foi, à força, impedido de mover-se no seu próprio ambiente e vizinhanças e perdeu não somente o seu poder de aprendizagem, o poder de coletar e guardar dados, mas também seu criativo poder de cura - lendo kiamvângila ye kiambukila. Submetido aos poderosos, o ser humano que construiu impérios, reinos, pirâmides, etc, foi declarado sem inteligência pelo invasor.

No topo disso veio o mais inumano e pecaminoso negócio oposto ao auto-desenvolvimento que tomou lugar em África - a escravidão, i. e., o tráfico de seres humanos. Isso se tornou a mais vergonhosa e desastrosa morte para o ser humano no continente africano. Nós sabemos, pessoas que viajam mais freqüentemente a diferentes partes do mundo, vão a bibliotecas (incluindo as bibliotecas naturais), escutam notícias, lêem jornais e, agora, quem trabalha com cadeia de emissoras no computador sabe mais do que aqueles que não o fazem.

Isso é o
poder de engavetar planos, idéias, a chave para a ativa aprendizagem. Sem ela Mûntu torna-se submetido a permanente aprendizagem passiva que é o agente condutor à ignorância. Colonização, escravidão, opressão e prisão, têm conduzido muitos nesse vicioso ciclo de vida.

A abolição do tráfico de escravos e descolonização não libertou completamente o povo africano em todas as partes onde eles são encontrados. Cadeias, prisões e projetos de alojamentos incrementados com grande rapidez são feitos não somente para controlar seus movimentos, mas para mantê-los fora das bibliotecas naturais, escolas e empregos. Tudo isso acontece no período que prepara para a entrada da zona criativa - lubata wa mvângila, o período de aprendizagem. Agora, armas de fogo e drogas estão sendo despejados em toda parte do continente para desestabilizar o processo de aprendizagem que deveria estar tomando o lugar nas comunidades Africanas. Conceitos de valor e sacralidade de vida e mundo estão se deteriorando.

Para os Bântu, o mundo natural é secreto e sagrado. Esses dois insondáveis epítetos para o nosso mundo natural, ampînda - secreto e anlôngo
sagrado, são cuidadosamente passados de geração a geração como o único meio de manter a mãe Terra segura e sadia para continuar a fornecer a vida na Terra.

E, por causa de ambos, o segredo - mpînda/bumpînda e a sacralidade - nlôngo/bulôngo, é um perigo para toda vida na terra, se Mûntu devido ao seu conhecimento, cuidadosamente não
Longuka bwè mu kanga ye kutula makolo ma nsiku miamena aprender como codificar e decodificar os segredos das leis naturais. Esses makolo (laços) podem ser qualquer coisa, genes ou elementos químicos.

Nós somos
sagrados porque nosso mundo natural é sagrado. Nossas moradias e nossos pertences são sagrados, porque são feitos de matérias primas tiradas do mundo natural, do mundo sagrado. Qualquer coisa feita do equilíbrio - Kinenga, do mais interno do solo é sagrado e não pode perturbar a vida dentro e em torno de nós. E muito mais, diria um Mûntu, nós somos sagrados porque nosso solo é sagrado e inalienável. Por causa dessa sacralidade e inalienabilidade desse solo (seu mundo natural particular), os Bântu mantinham seu solo, o sustento de todas as vidas, como uma inalienável comunidade. Ninguém podia colocar um preço nele. Era a precaução para evitar abuso e ganância, o solo não era mercadoria para ser comprada e vendida; o solo era inalienável no sistema tradicional. Cada domínio era ganho por uma certa matrilinearidade (ou patrilinearidade) que podia, de fato, permitir o uso de uma parte dessa área ao parente ou mesmo ao estranho/estrangeiro, mas isso não significava que dava direito sobre esse solo.

Reconhecer a sacralidade do mundo natural é o começo de nosso entendimento de ser um com a natureza; ou é ou não é. E dingo-dingo dia kala ye zima, o processo de viver (ser, aparecer, surgir no mundo natural) e morrer (sair, desligar-se do mundo natural), ou seja, acender e apagar, ligar e desligar. Um não existe sem o outro. Nosso mundo natural é sagrado porque ele carrega ambos, vida e morte, em perfeito equilíbrio para manter toda existência nele em movimento. Destruir esse equilíbrio, sua sacralidade é causar um fim para ele e para todos nós.
Autor Fu-Kiau K. K. Bunseki
Tradução: Makota Valdina Pinto