terça-feira, 31 de agosto de 2010

A PARTICIPAÇÃO VITAL — A UNIÃO VITAL







“A chave para a compreensão dos costumes e instituições dos Bantu parece ser o facto da comunidade, da unidade de vida... O fecho da abóbada da sociedade Bantu parece ser um princípio único, a participação”. “A participação desempenha o primeiro papel na vida humana” (1).



A participação na mesma vida, ou união vital, aparece como o princípio-base da cultura Bantu. D’Ele flúem, com rigor lógico, todas as instituições políticas, sociais, económicas, artísticas e nele se fundamenta a Religião Tradicional A compreensão da participação assegura a explicação do comportamento individual e social Bantu.



Esta sintetização. Que não pode ser defendida somente como hipótese de trabalho, está confirmada pelos especialistas negros (filósofos, teólogos e etnólogos), pelos africanistas e pela fenomenologia.

A vida, princípio e fim de todo o criado e das comunidades Bantu, tem uma causa primeira. Deus, princípio formador e informador de todos os seres, inundou a criação com este princípio vital.

Deus é o manancial e a plenitude de vida. Por isso a vida é para os Bantu o maior dom de Deus e uma realidade sagrada e de preço inestimável. Os primeiros antepassados receberam-na de Deus para a comunicar e defender. Esta sida, que é energia, força e dinamismo incessante, impregna todo o universo. Aparece como misteriosa — mística mas real e tangível em suas concretizações e acções contínuas. Todo o universo palpita porque é dinâmico, activo, vivo, pujante.

Por isso, os seres são afins, participam de uma idêntica realidade, embora em graus diferentes. Cada ser está constituído por esta realidade, que se manifesta de forma específica segundo a sua diversidade “O mundo das coisas é como uma teia de aranha na qual não é possível fazer vibrar um só fio sem destruir toda a malha”.

A. Césaire canta a participação vital de todos os seres:

“Eu, peito aberto...

Eu quereria ser sempre mais humilde e mais pequeno, sempre mais grave sem vertigem nem vestígios até perder-me e cair na viva semente de uma terra muito aberta.

Fora uma bela bruma por atmosfera sem mancha cada gota de água se faria um sol

com nome idêntico para todas as coisas seria Encontro Total...

Então imagino que a vida me banhará por inteiro

ou melhor, sentirei como ela me a palma ou morde”.

Porque existe uma única corrente vital, brota “uma unidade ontológica de todos os seres, uma comunhão universal, um dinamismo interno que se expressa sobretudo pela palavra e o movimento”. Mundo invisível e mundo visível aparecem unidos numa simbiose de vida indestrutível.

A união da vida, como a realidade mais atendível, impregna todos os seres com uma realismo tão marcado que obriga todas as instituições sócio políticas a que tentem, sobretudo, conservar e fortificar este valor, supremo da participação comunhão numa mesma realidade: Vida, força, existir, são uma idêntica realidade, o valor fundamental, ontológico, donde deriva a sabedoria bantu, com o qual elabora a totalidade dos raciocínios, motiva os comportamentos, funda a sua religião, desenvolve e justifica a magia, solidariza a sociedade e regula a ética.

O universo está composto de energias. Por isso afirma Senhor que o conceito de ritmo, de ondas vitais, fundamenta a civilização negra. “No centro do seu sistema, animando-o como o sol ao nosso mundo, está a existência, isto é, a vida... A sua metafísica é uma ontologia existencial”.

“Para os africanos, a energia divina está presente em todas as partes da criação, de modo que os homens, as outras criaturas viventes e até os fenómenos naturais estão dela penetrados e acham-se, por isso, em comunhão”. Nesta concepção vitalista não há lugar para o completamente inerte e não existe o vazio. “O Bantu está radicalmente impossibilitado de formular o “nada absoluto”, a negação do ser. Não pode imaginar a não presença. A. sua concepção afirmação da existência absoluta não lho permite”.





Admite que num espaço “não haja nada”, porém, ao mesmo tempo saberá e sentirá que está “o nada”, isto é, há somente uma ausência de corpos sólidos, observáveis. Todo o universo está cheio, “o nada está” no meio dos seres, O espaço deixado livre por um objecto ou por um ser que se move, é ocupado pelo “nada” que assim separa os corpos.

“Na nossa filosofia, o nada é a negação do ser determinado, realizado na natureza. Não significa nem a não espírito, nem a não existência, antes a não substância determinada, o não existente concreto”.

Por isso, “o nada” existe positivamente, embora não seja algo determinável, concreto, mais ainda, embora seja radicalmente indeterminável, irrealizável na natureza. Porém, é necessário para qtïe os seres realizáveis possam estar separados, diferenciados no espaço. Ë o seu receptáculo universal, o lugar onde o bantu teve que localizar os seres e que devia ser diferente deles. “O nada existe e significa a não presença de uma substância”.

A união vital estrutura o universo como um tecido de forças em equilíbrio, que a acção dos poderosos pode desequilibrar e também tornar a ordenar. Somente ela explica e dá coerência à cultura banta e fundamenta a sua concepção existencial. Sem ela não se poderia compreender nem sistematizar o pensamento banto, nem explicar cada uma das manifestações culturais, que só podem ser estudadas como fenomenologia da participação vital. “A concepção que o Muntu (pessoa) tem do ser é sintética, unificadora: “O ser é essencial mente uno e todos os existentes estão ontologicamente ligados” .

Os seres sucedem-se num incessante ritmo de nascimento, morte, vida e interacção. O mundo permanece íntegro porque idêntica energia vital circula sob o mesmo impulso inicial, embora os seus componentes estejam em permanente intercâmbio e a modifiquem. É uma unidade, uma igualdade concêntrica que se amplia na multiplicidade de seres e acções. Por isso não há mudanças “qualitativas”, apenas se dão as “quantitativas”.

A corrente vital é uma força energia de idêntica “qualidade” porque partiu de um mesmo princípio. Entretanto, a sua “quantidade” este possuída, aumentada ou diminuída de maneira diversa nos variados seres da criação. Esta é a única explicação e justificação da magia Bantu, o fundamento de seu humanismo e a estrutura “dogmática” da sua Religião Tradicional.



O universo enriquece-se, transforma-se e muda pela incessante mutação e intercâmbio da energia vital.

Nesta participação vital existe uma hierarquia de forças activada pela interacção contínua. A participação vital é um elementode conexão que une todos os seres sem os confundir, porque é comum a todos e vivifica a cada um porque está no seu interior.







“A participação tem a missão de integrar os seres particulares e de situá-los dentro de um plano total do mundo visível e invisível, de forma que cada realidade tome o seu lugar e a sua verdade na sua conexão e na sua relação universal.., é o eixo das relações dos membros de uma mesma comunidade, o que une indivíduos e colectividades”.

Os bantu contemplam a criação com um olhar unitário que se vai concretizando, depois, “em diferentes níveis de vida”. A participação é “a razão última, não somente pessoal de cada homem, mas desta unidade na multiplicidade, desta totalidade, desta unidade concêntrica e harmónica do mundo visível e invisível”.

Senhor alegrava-se com a “unidade reencontrada”: “Aqui se tornam presentes os tempos primitivos, se reencontra a unidade, se reconciliam o leão, o touro, a árvore; o pensamento enlaça-se com a realidade, o ouvido com o coração, o sinal com o significa.



“Todo o universo visível e invisível — desde Deus até ao grão de areia, passando pelos génios, antepassados, animais, plantas e minerais — está composto de “vasos comunicantes”, de forças vitais solidárias, que dimanam de Deus”.

Embora os Bantu vivam solidários, sobretudo com a sua comunidade, não há dúvida de que sentem uma solidariedade indestrutível com o universo e sabem que estão imersos na interacção que tudo anima e agita. “O seu universo forma uma unidade indivisa, o “Bantu” humano (o ser) vive em uníssono com o mundo visível e invisível, O homem não está situado frente ao cosmos, mas no cosmos”.



A participação vital rege-se pela lei da unidade. O pensamento banto faz-se totalizador; tudo o que sucede não é mais que concretização ou expressão de uma realidade mística, meta-física.

A partir da integração na sua família comunidade pelo sangue vida recebido dos antepassados, os baniu sentem-se em comunhão com o universo, envolvidos na corrente vital, “carne da ‘carne do mundo” (A. Césaire).



Esta solidariedade com a sua comunidade e com o universo anela e exige a vida harmoniosa, sem conflitos, a paz, a comunhão com o outro e a quietude nos modos dc vida que garantem a união vital fortificante.

Esta é a maior aspiração da cultura Bantu. O maior mal, o terrífico, é que alguém, antepassado, ou espírito, rompa o equilíbrio com a sua acção sobre a união vital e a desvie para fins desarmonizadores. A participação vital abrerios de parem par a compreensão da cultura Bantu, que é essencialmente projecção imersão — participação num mundo místico mágico de interacção vital. Somente se pode defini-la e entendê-la se parte das vivências de confrontação — participação —comunhão do sujeito com o objecto.

A civilização Bantu busca a imerflo do homem, com todo o seu ser, na natureza, em Deus, nos antepassados, na comunidade, em si mesmo. E ali, bebe sem pressa até à embriaguês, o doce e reconfortante licor da vida. A participação interactiva forma o núcleo inicial do humanismo e da antropologia Bantu.

Desta comunhão vital com a totalidade, segue-se a quietude paralisante das instituições e o conservadorissimo mais integrista. Porém, origina uma vivência mística permanente, porque detectam sem cessar a acção misteriosa da participação vital para bem ou para mal; a hierofania e a vivência religiosa tornam-se permanentes.



“Sob a aparência de preocupações mesquinhas que enchem

• Manifestamente a trama da vida quotidiana, encontra-se no fundo da alma Bantu uma aspiração, uma atracção irredutível para um reforço de vida infinita. Todo o reforço de vida se encontra implicitamente encerrado na saudade, hoje ignorante do seu verdadeiro destino”



O Bantu está possuído “de uma tal afecção de comunhão com as coisas, que o universo inteiro lhe parece animado e que a identidade interna de todas as coisas reveste um aspecto sagrado... A visão espiritual das coisas é a última finalidade da religião e da cultura, o terreno sobre o qual pode cresce.

Devemos reconhecer que julgávamos esta cultura incapaz de nos proporcionar valores. Porque o Ocidente, desde o seu inocentíssimo, contempla os outros povos com a curiosidade compassiva de quem somente espera gestos exóticos e excitantes pelo seu desassombro, ou infantis e violentos, que merecem correcção sem dissimulação, e observa só as suas deformações, muitas vezes exageradas.

Desaparece o fatalismo exclusivo, que tantos têm querido ver cm observações superficiais, e descobre-se que o Bantu é consciente da totalidade coerente do universo. Por isso, pode-se falar de uma filosofia global, cósmica, centrada na união vital.

Senhor fala de um “sub naturalismo”. Outros perguntam-se se não impera um Pan vitalismo, já que “as religiões Negro Africanas estão todas elas centradas sobre o problema da vida pois que, para elas, tudo é força, organização, equilíbrio, potência e renovação”



Embora os Bantu não desconheçam o aspecto essencial, estático do “ntu” (ser), o certo é que não os preocupa a ordem das oflencias. Consideram os seres na sua realidade existencial. Vêem coisas concretas, dinâmicas e activas que não permitem uma visão

-Interpretação puramente abstracta e estática do todo. A sua mitologia fundamenta-se no dinamismo do ser, que leva, desde a participação vital, à interacção permanente. Por isso o “ntp” é capaz de aLimentar ou diminuir.

“Fies insistem mais no aspecto dinâmico do seu “ntu”. É neste sentido que se pode falar de uma “Dinamonologia banto”.

“O ntu” ou o ser é compreendido no seu aspecto dinâmico (principium operandi); o ponto de vista estático (principium essendi) é de pouca importância. “Isto é precisa Mujinya Chiri — os Banto não se detêm a considerar as essências como possíveis, tomam os seres como são na sua ordem existencial, insistem no aspecto dinâmico do seu “ntu” sem ignorar o aspecto fundamental, estático, essencial” (18).



A ontologia Banto dinâmica é um tratado de cinemática, uma biologia em sentido próprio (19).

Esta realidade ontológica aplica-se a tudo: está enfermo quem não tem força, é inteligente que tem mais força no cérebro, a saúde é força, a cerveja e a árvore frondosa são fortes, como o rio caudaloso ou mineral de ferro. Falam da força do calor e da do movimento. A coragem é força do coração e uma empresa árdua é forte. Uma pedra com forma original, uma montanha elevada ou os acidentes salientes da paisagem têm uma força característica, como certos animais e plantas. O feiticeiro, o Chefe, os antepassados, o curandeiro e o adivinho e os homens que se des\tacam por alguma especialidade têm uma força especial.

O padre Lufuluabo (20) explica que o verbo luba, que significa “se?’, não possui um valor existencial. Precisa de um prefixo para determinar o lugar e o modo de ser, isto é, onde e como “existe”. Somente então o conceito “ser” indefinido e vago, se concretiza e recebe um significado preciso e se chega à noção existencial de “ser”. “Tudo isto é de extrema importância para a ontologia banto, porque a ideia de “presença” como elemento essencial do ser, dá uma orientação fundamental a tal metafísica”.

A. Kagame adverte o mesmo na sua língua materna; o Kinyarwanda: “Na nossa língua, o verbo “ser” não se pode jamais empregar como sinónimo de “existir” (2!).

Lufuluabo aprofundou também o conceito de ser no seu aspecto dinâmico — místico — vital. A expressão: “o existente está ali presente” possui um sentido “místico”, isto 6, o ser é o inspirador do sentido religioso; é activo, operativo, dinâmico, vital” (22).

A fenomenologia, que fundamenta esta sistematização, aparece na variedade de gestos da vida hanto. Hasta contactar com ela para comprovar que este é o substruto primário e original.

“As filosofias conhecidas da África tradicional, possuem em comum ser dinamistas. Reprcscntam o mundo não como uma entidade estável, fixa no ser, mas como um devir em perpétuo crescimento... Participando na mesma vida, todos os seres, inclusive o homem, sentem uma profunda fraternidade.

Nesta perspectiva, o homem não se situa no mundo afirmando-se, como o ocidental, frente ao que não é ele mesmo nem suas obras, mas sim sentindo-se como uma parte da natureza, em continuidade com ela” (23). A descrição do “Meio Divino”, de Teilhard de Chardin, entusiasmou os escritores da Negritude porque os constitutivos da sua cultura lhes traziam um eco da concepção teilhardiana. O Meio Divino é imenso como o mundo , inumerável, vasto, e “junta sem confusão à sua Unidade triunfante e pessoal os elementos do Mundo”. Ê próximo e tangível, já que pressiona mediante as

forças todas do universo, foge do abraço do homem, retira-se cada vez mais longe arrastando-nos até ao centro comum de toda a consumação.

A concepção negra de uma vida dinâmica e animadora do cosmos exultou de alegria, disse Senghor, quando desvelou que Deus se descobre por toda a parte, como Íneio universal, porque é o ponto

• Último no convergem todas as realidades.

Por tanto, nenhuma criatura.., pode ser considerada, na sua natureza e na sua acção, sem que no mais íntimo e mais real dela mesma... se descubra a mesma Realidade, una sob a multiplicidade, sem poder ser captada em sua proximidade, espiritual sob a materialidade”.

“Este Foco, esta Fonte estão, pois, em todas as partes. Precisa mente porque é infinitamente profundo e puntiforme, Deus está infinitamente próximo e difundido por todas as partes. Precisamente porque é o Centro, ocupa toda a esfera”.

“No Meio Divino tocam-se todos os elementos do universo, pelo que possuem de mais interno e definitivo... Estabeleçamo-nos no Meio Divino. Encontrar-nos-emos no mais íntimo da almas, e no mais consistente da matéria. Descobriremos, com a confluência de todas as belezas, o ponto ultra vivo, o ponto ultra sensível, o ponto ultra activo do universo”.

E a Realidade suprema e complexa, mediante a qual a opera ção divina nos vai forjando “é a Reflexão quantitativa e a Consuma ção qualitativa de todas as coisas; é o misterioso Pleroma onde o Uno substancial e o Múltiplo criado se unem numa totalidade que, sem nada acrescentar de essencial a Deus, será não obstante uma espéciede triunfo e de generalização do ser”.
Fonte: 
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